Esse artigo quem mandou em contribuição para o Blog foi o
Jose Brasil Filho.
Maravilha, vale a pena ler, assino em baixo.
Jose Brasil Filho.
Maravilha, vale a pena ler, assino em baixo.
O poder transformador da Cultura
HERBERT DE SOUZA
Primeiro tocou a orquestra. Depois, as
cortinas se abriram e comecei a cantar. Tinha nas mãos a letra de “Apesar de
você”, hino de resistência à ditadura que, em algum momento, todos nós tínhamos
cantado nas ruas, nas praças, nos bares, nas esquinas. Difícil mesmo era
entender, sob os holofotes do Teatro Municipal e à luz da razão, a emoção de
estar ali.
Na
coxia, mais de 500 artistas se preparavam para entrar em cena e, fosse por
música, canto, dança, teatro, começar a mudar no imaginário, na fantasia, na
criança. Mudar no faz-de-conta, no palco, na loucura. Mas quanto há de loucura
em querer mudar este país?
Durante
as cinco horas de espetáculo que se seguiram, mudar se provou possível. Transformar
na fantasia é o primeiro passo para transformar na realidade, é provar que
recriar o Brasil é preciso e possível. Em cada cena, a arte emocionava, fazia
rir, chorar. E cada um de nós, espectadores da imaginação alheia, nos
encantávamos com um espetáculo que, além de todas as suas proezas, nos mostrava
o quanto pode o mundo da cultura.
Estávamos
em meados de maio quando, numa primeira reunião no restaurante do Teatro
Municipal, cerca de trinta significativos representantes de todas as áreas aceitaram
o desafio. Fazer arte contra a fome, fazer arte a partir da fome, fazer fome
virar arte. Carregava então a mesma convicção que me move ainda. A de que um
país muda pela sua cultura, não pela sua economia, nem pela política, nem pela
ciência.
Aos
poucos os artistas começaram a se organizar, discutir, divergir, construir e
reconstruir idéias, vontades, desejos, sonhos. Foram meses de dedicação. Mas, mais importante do que o tempo entregue a
cada discussão, foi dedicar cada arte, cada gesto, cada tom, cada som ao outro, à solidariedade. O gesto de
dar, de entregar, de somar. Não apenas exibir, mas doar e oferecer.
A
cultura está entre nós, sempre. É no campo da consciência que o mundo se faz ou
se desfaz, é nesse universo da imagem, do som, da ação, da idéia. Tudo se
resolve na criação. É na invenção que o tempo volta atrás e o atrás vai para
frente. É onde o homem vira bicho, bicho conversa com gente. É onde eu sou
Guimarães, você é Rosa. É onde fica como dantes ou tudo muda num átimo. É onde você
se entrega de mãos amarradas ou se rebela de faca no dente. É onde o silêncio
vira pedra ou o grito rompe tudo e esparrama vida por todos os poros. E onde o
risco chora e o choro é o começo da cura.
Foi
o mundo da cultura que primeiro aceitou o desafio de mudar. De criar um outro
Brasil. Sem pobreza e sem a arrogância dos ricos. Sem miséria, definitivamente.
Um Brasil totalmente simples, mas radicalmente humano. Um Brasil onde todos
comam todos os dias, trabalhem, ganhem salários, voltem para casa e possam rir,
beijar a mulher que ama, a filha que emociona, abraçar o amigo da esquina, se
ver no espelho sem chorar pelo que não realizou.
Esta
mudança começou a ser feita. Com tons, imagens, ação, idéias, emoções. Esta
mudança começou a ser feita com gente. E gente é, antes de tudo, cultura. Caldo
de gente é cultura. Sumo de gente é esta parte divina que cada diabo carrega
dentro de si. O mundo imaginário é onde, do duelo entre Deus e o diabo, não é
possível prever o resultado. E é pela brecha da cultura que podemos dar o salto
para o reencontro do país com a sua
cara. Buscar o que é grande em cada um, buscar a possibilidade de fazer a
felicidade o pão nosso de cada dia. É esta a vida e a nossa busca. É esta a
fome e a nossa morte.
A
cultura apareceu para construir no campo arrasado, para levantar do chão tudo
que foi deitado. E descobrir enquanto é tempo, que o importante é ser cidadão,
é ser gente. O que importa é alimentar gente, educar gente, empregar gente.
História é gente. Brasil é gente. E descobrir e reinventar gente é a grande
obra da cultura. Uma obra que será nossa. Será porque a cultura continua a
pensar, discutir, reunir, transformar. A arte sabe e quer fazer mais, muito
mais. A arte tem poder de transformar, nem que seja primeiro na ficção, na
imaginação.
Terminado
o espetáculo, de volta aos bastidores, o mundo da cultura está desafiado a
continuar pensando, fazendo, mexendo, revolucionando. Até aqui, foi grande. Mas
o grito deve ecoar sem parar, o gesto feito deve continuar, entrelaçando ações,
abraçando em solidariedade. Uma nova consciência deve criar o mundo novo e
enterrar a miséria e a exclusão para sempre. Uma cultura que busque no fim de
cada atalho uma reta. Que busque em cada ponta de sofrimento uma alegria. Que
busque em cada despedida o reencontro. O Brasil está aí para ser criado,
recriado. Esta criação apenas começou. E a ação de recriar é a nossa cultura.
Artigo
publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 20/09/1993, e republicado no
livro “Ética e Cidadania” [Carla Rodrigues e Herbert de Souza. São Paulo:
Moderna, 1994, Coleção Polêmica, p. 16-18]
José Brasil Filho
Mestre em Educação Brasileira-UFC
Diretor da Escola de Música de Sobral/CeMestre em Educação Brasileira-UFC

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