Espaço Opinião
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A primeira opinião/critica vem do músico e escritor Léo Mackellene sobre o espetáculo Pouso,
de Marcelle Louzada, apresentado recentemente em Sobral.
A ARTE PRECISA SER REINVENTADA
Dia 22 de maio passado, o Teatro São João, um dos principais
aparelhos culturais da cidade de Sobral-CE, apresentou o espetáculo “Pouso”, da
artista Marcelle Louzada; no panfleto – a que se dera o nome de “fly” –, a
classificação do espetáculo: “Corpo/Instalação”.
Tratava-se, na verdade, de um espetáculo de uma hora e meia,
mais ou menos, em que a atriz-bailarina-artista Marcelle Louzada reunia
fragmentos de si a partir de memórias anotadas em diários que começou a
escrever quando chegou no Ceará, mais precisamente, em Fortaleza, há dois anos.
“Cheguei sem palavras. Já estou no quarto diário”, diz num dado momento do
espetáculo, que tinha tudo pra ser bom: um músico experimental do naipe de
Vitor Colares fazendo a trilha sonora; um co-criador ousado e precioso como
Jonnata Doll, como parceiro num dos vídeos-instalação que servem de cenário ao
espetáculo; apoio logístico e financeiro dos órgãos municipais/estaduais de
cultura e um belo jogo cênico e plástico que, se estivéssemos numa exposição de
arte contemporânea, como no saudoso Salão de Abril, em Fortaleza, ou no Safra,
em Sobral, teria feito todo o sentido. Estando num teatro, foi um fiasco.
É um espetáculo pretencioso em que se pode perceber a
influência direta da “dança desabafo” e do teatro do improviso de Silvia Moura,
contudo, sem o apuro e a força do trabalho que a artista cearense mantinha no CEM,
grupo teatral de que foi diretora por 11 anos. Marcelle Louzada, por vezes,
parece perdida, caminhando de um lado pro outro, tentando se apoderar do espaço
do teatro, entre as cadeiras da plateia, pelo corredor de acesso, fazendo
breves gestos de um balé em desconstrução, pelo andar de cima – aliás, único
momento do espetáculo em que a plateia pôde se sentir viva: a tensão de quando
achamos que ela fosse se jogar lá de cima. “Como é difícil falar de amor! Nunca
pensei que falar de amor fosse tão difícil.”, diz a certa altura. Da maneira
como pretendeu falar, ainda que falasse, quem entenderia?
Poderia se trazer o morto à baila: “a arte não precisa ser
compreendida, a arte precisa ser só sentida”, concepção contra a qual evoco
Otto Maria Carpeaux, quando ele diz que “O estruturalismo é o ópio dos
literatos”, e, parafraseando-lhe, bem se pode dizer que “o estruturalismo é o
ópio dos artistas”. Assim, a concepção esquizofrênica da arte pela arte, da
arte hermética, do gênio incompreendido, nada mais é que o lugar que a
sociedade utilitária contemporânea relegou à arte, como diz Terry Eagleton: “um
ornamento pouco lucrativo”.
Parece que o que sobrou à arte é ser tudo, menos arte. Desde
que a arte conceitual entrou na moda, basta ter uma boa justificativa que
qualquer mictório se transforma numa peça de contemplação. É risível não fosse
trágico.
O espetáculo “Pouso”, de Marcelle Louzada, extrapola a contemplação, sem
superá-la, é o excesso do excesso e pelo excesso de descontextualização. É um
espetáculo que eu não diria “inacabado”, ou “em construção”, eu diria “recém-começado”.
A artista ainda está no início de uma jornada para torná-lo um bom espetáculo
que, se não pretende comunicar – afinal, “a arte não precisa ser compreendida”
–, pelo menos alcance as pessoas a fim de fazê-las sentir algo, nem que seja
“incômodo”, mas um incômodo minimamente fundado. Também nesse sentido, “Pouso”
é entediante, entediante e pretencioso. A última esperança era a de que o texto
dos diários que a artista espalha pela plateia a fim de pedir, ao longo do
espetáculo, que os leiam em voz alta – no escuro, diga-se de passagem – salvasse
a proposta. Nem isso. Os textos são adolescentes, pueris, faltando-lhes
qualquer observação mais aprofundada do cotidiano ou de si, que é a proposta do
espetáculo. Pretencioso porque a sensação de obra recém-começada se dá a ver também
pela fragmentação oca e pelo silêncio vazio, perdidos em momentos em que fica
claro – embora às escuras – que a atriz-bailarina-artista não sabe bem o que
fazer: se espalha búzios ao longo de um trajeto além do palco italiano ou se se
veste de uma só vez com todas as suas roupas que traz dentro de uma mala. Quando
diz que doou a maior parte delas, tendo ficado apenas com aquelas que têm
alguma história, nasce uma outra pequena chama, como a chama de uma vela, tênue
expectativa de que alguma boa história apareça ali, ainda que contada em forma
de dança. Nada. Resume-se, a personagem-atriz-bailarina-artista, a contar a
ocasião em que ganhara tal ou tal saia, tal ou tal camisa, tal ou tal vestido.
Que o horizonte de expectativa fosse quebrado, tal como sugere Jauss, pela
força da proposta ainda ia, mas não, quebra-se a expectativa pela sua
fragilidade.
As imagens que se repetem incessantemente nos vídeos que
compõem o cenário trazem alguma nudez agressivamente marcada pela simbologia do
ventre sangrando da atriz. Qual a relação dela com o restante do espetáculo?
Nascimento? Rompimento? Não sei. São belas as imagens, mas apenas belas.
Noutra, um casal edêmico, iluminado apenas por uma lamparina de eremita e
vestidos apenas com um véu plástico, dança na madrugada das ruas do centro de
Fortaleza. Muito bom! Mas... a quê essas imagens se ligam nas amarrações da
trama?! Elas são uma peça à parte.
É um espetáculo plástico, e só. Me fez pensar no quanto
estamos mergulhados na imagem, submersos na sociedade do espetáculo: não
adianta mais só contemplar as imagens, não adianta mais só substituir a
realidade pela imagem da realidade, numa espécie de alegoria da caverna
pós-moderna; é preciso participar da imagem, violá-la, estar dentro dela, fazer
parte de um quadro, como num filme de Akira Kurosawa.
O ápice da fragilidade do espetáculo é quando a atriz diz que
lhe doem as costas quando dorme de rede e, cinco minutos depois, reforça o coro
sudestino que lhe atavia o juízo com perguntas do tipo “você é louca?!” – cita
ela – referindo-se a ter trocado Belo Horizonte, em sua terra natal, ou quem
sabe São Paulo, um possível destino, pelo Ceará, ao que ela, sem perceber que
se contradiz, responde “Se eles soubessem como é bom dormir de rede!”. Ué! Já melhorou
da dor nas costas?! Eis uma das armadilhas do teatro do improviso. Tanto pior
se não for: uma contradição dessas em um texto planejado, estudado e dirigido é
uma garfe irrecuperável; até mesmo porque aqui já estamos quase no final do
espetáculo – graças a Deus! Não há tempo para explicar equívocos, e ainda que
desse, a essa hora, metade das pessoas já saiu do teatro; a outra metade
combina pelo whatsApp o jantar de logo mais.
De todo o “exercício de composição”, como diz o panfleto de
divulgação, ficou uma coisa, pra mim, a mais importante: a arte precisa voltar
a ser arte. Urgentemente.
Léo Mackellene é
músico e escritor. Mestre em “Literatura e Práticas Sociais” pela Universidade de Brasília (UnB). É editor
do periódico científico Scientia, do
jornal observatório de mídia O outro lado
da coisa, e da revista de arte e cultura Brabo!
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